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Você Não Passa de Um Dia
ERAM quase onze horas da noite quando fui dormir. Tenho dificuldade de pegar no sono porque meu sistema necessita de pelo menos uma hora para se acalmar. O plano era começar o dia seguinte dormindo e esquecer do mundo. Não consegui meu objetivo. Acordei às sete horas da manhã como de costume.
Um pensamento corria em minha mente antes de eu dormir, que com certeza ocupou mais espaço do que deveria.
Também não poderia ser diferente, qualquer ser humano agiria como eu agi. Aquela frase que o doutor falara com tanta convicção, confesso que a duvidei. Ele percebeu minha dúvida. De fato, suas palavras foram muito fortes e me pegaram desprevenido. E como eu me conheço, e ele também a mim há bastante tempo, aceitei o desafio, porque gosto de ser desafiado.
“Você não passa de um dia...” Essas foram as suas palavras, que ecoaram o dia todo em minha mente. Hoje reconheço que não deveria duvidar. Ele é médico, intelectual reconhecido e domina amplamente aquilo que faz. Simplesmente me desgastei lutando contra uma doença incurável, porque se ainda vivo, isso continua sendo um mistério muito grande para mim.
Levantei-me, então, objetivado a lutar contra essa minha doença. O primeiro objetivo era escravisar todo pensamento mal e fazer aflorar uma positividade de vida para que de certa forma não agravasse minha doença, pois cria que assim venceria.
Fui ao banheiro e começei escovar os dentes mirando minha face no espelho, como se esta
fosse a primeira vez que a vira. Isto, contudo, não foi suficiente para omitir uma particularidade minha conhecida de há muito tempo: o meu cinismo. Acredite, o cinismo é enganador, e eu estava sendo enganado por mim mesmo, achando que poderia resolver tudo com um simples estalar dos dedos e uma asseveração firme e grossa de minha voz, dizendo que tudo iria mudar.
A doença, contudo, é primeiramente uma luta interior que muitos não sabem que está sendo travada. De certa forma eu sabia o que se passava comigo, tinha plena consciência dessa lutar interior que me agonizava, embora eu não desse tanta relevância a ela, pois me vinha em forma de dias tristes, mau humor e desilusão da vida, às vezes, mas me conformava com a idéia de que todo ser humano passava por isso, e como uma gripe, em poucos dias era pacificada, ou pelo espírito observador da lei de Deus, ou até mesmo pelo cinismo revestido de sinceras ponderações, que me convenciam de que o homem cresce e muda, as coisas mudam, e eu estava crescendo e mudando.
Quando estamos escovando os dentes, olhamos para nós mesmos, para o nosso rosto, e para nossa boca aberta no continuo vai e vem da escova. Esse ato automático faz com que nossa mente divague por lugares dos mais diversos. Eu não queria isso. Lutava para manter minha concentração no escovar. Não foi fácil, a mente não dá descanso e teima repassar continuamente coisas que marcam nossa vida.
Mas eu precisava pensar diferentemente. Não deveria ofender minha integridade espiritual e carnal. Cada minuto que se passava era uma verdadeira prova à minha capacidade de escravizar os meus pensamentos a uma atitude positiva que me permitisse, pelo menos, durar mais de um dia.
Quando se atenta com esmero para o que se faz, o resultado findará em algo positivo. Eu acreditei nisso. Eu queria vencer. Pessoalmente me vesti dessa coragem e queria a todo custo mudar a situação.
Tomei café, orei calmo, falando compassadamente as palavras, para que minha mente não divagasse e minha oração soasse honestidade de coração. Depois arrumei tudo e estava pronto para trabalhar.
Sentado em meu carro, poderei se trabalhar seria prudente. Por um lado seria um bom teste para minha convalescência, ou seria um tiro pela culatra, e agravaria ainda mais minha doença. A opção de ficar em casa era mais sensata, pois o corpo precisava de descanso e alma muito mais, o que seria um precedente sem igual para o minha recuperação.
Até este momento ninguém sabia o que se passava comigo. Nem mesmo minha esposa que tanto se preocupava com minha saúde, sabia. Tenho amigos que compartilham a idéia de ocultar do cônjugue coisas que são necessárias. Pessoalmente não concordo, mas caminhava nessa trilha. Eles dizem como se fala no futebol: Em time que está ganhando, não se mexe. Eu confiava plenamente em minha capacidade de ser curado sem incomodar ninguém.
Saí do carro somente com um objetivo: dormir. Entrei no quarto e logo comecei tirar minha roupa escravizando meus pensamentos aos atos que fazia. Nada de rotina poderia acontecer, sob o risco de desviar minha atenção a fleshes que poderiam agravar minha doença. Mas a casa estava em silêncio, e parece que no silêncio a mente fala bem alto.
Foram milésimos de segundos. Meus filhos ainda dormiam o sono matutino e minha cama parecia continuar quente, com uma visão espetacular de minha esposa deitada com os seios semi descobertos. Nos instantes que a olhei, rápidos e súbitos pensamentos se apoderaram de mim, e então gritei um “não” esmurrando minha cabeça como se estivesse querendo traspassá-la com uma arma mortífera. Meus olhos lacrimejaram e chorei feito criança. O seios de minha secretária, que impiamente contemplara em meu escritório, foram minha desgraça. E imediatamente ecoou em minha mente: Qualquer um que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela.
O Médico dos médicos tinha razão em dizer: “Você não passa de um dia”.