A Igreja e a Ação Social (parte 1) escrito por 17 de dezembro de 2014

A aparente piedade da teologia liberal


Os cristãos devem tomar cuidado ao se envolverem com comunidades evangélicas que dão muita ênfase ao trabalho social. Isso porque essa tônica pode ser decorrente não de uma concepção bíblica acerca do sofrimento e da pobreza, mas sim de tendências doutrinárias liberais.


O liberalismo foi um movimento teológico que surgiu no século 18 e que acolheu a cosmovisão reinante na modernidade gerada pelo iluminismo. Essa cosmovisão dava lugar de supremacia à razão (a lógica humana e não a revelação bíblica define o que é verdadeiro), propunha o funcionamento uniforme da natureza (a ordem natural não se altera; logo, não existem milagres) e cria no progresso da humanidade por meio do uso da razão, do avanço científico e da educação moral.


Os teólogos liberais perceberam que uma visão de mundo desse tipo não atribuía nenhum sentido às doutrinas ortodoxas cristãs, uma vez que estas entram em choque com a mentalidade científica moderna. Por isso, temas como a transcendência divina, a inspiração bíblica, a divindade de Jesus, a morte expiatória de Cristo, a ressurreição e o juízo eterno foram totalmente rejeitados pelos teólogos liberais ou, no mínimo, reinterpretados em termos meramente morais ou simbólicos. Seu objetivo com isso era tornar o cristianismo atraente e relevante para as novas gerações que não estavam mais dispostas a sacrificar a razão, aceitando o sobrenatural.


Como, porém, manter as portas de uma igreja aberta quando o coração de sua mensagem é removido? Em outras palavras: como a igreja poderia continuar existindo e fazendo alguma diferença se a doutrina do Deus-homem que morreu e ressuscitou para livrar os pecadores da condenação eterna é, segundo diziam, somente uma fábula inspirada em velhos mitos pagãos? Despojada de sua mensagem fundamental, não seria melhor que a igreja fechasse suas portas e colocasse seus prédios à venda?


A resposta dos teólogos liberais a essas questões foi a seguinte: a igreja deve mesmo abandonar seus velhos dogmas tão inaceitáveis para a mente científica moderna, mas pode ainda assim continuar funcionando e até se tornar relevante para o mundo desde que abrace a tarefa de educadora moral e agente de auxílio social. Em vez de ser, portanto, a proclamadora de um evangelho sem sentido e de histórias bíblicas fantasiosas, a igreja deveria agora mostrar sua importância para o mundo agindo como uma promotora de valores éticos e como uma entidade assistencial.


Filósofos e teólogos como Immanuel Kant (1724-1804), Albrecht Ritschl (1822-1889) e Adolf Harnack (1851-1930) restringiram então o cristianismo ao âmbito da ética e, especialmente Ritschl e Harnack, realçaram a tarefa da igreja de promover o reino de Deus e a fraternidade universal, transformando este mundo por meio de gestos práticos de amor e de justiça.


Os danos doutrinários do liberalismo foram devastadores e são percebidos claramente ainda hoje em muitas igrejas e seminários onde essa vertente teológica permanece viva e ativa. Com efeito, como resultado de suas propostas, os dogmas cristãos foram desacreditados, sendo hoje ridicularizados em alguns círculos teológicos.


Em termos de eclesiologia aplicada, porém, o legado do liberalismo foi a construção de uma mentalidade em que a igreja mostra especialmente sua relevância na medida em que atua como escola de valores éticos ou associação de amparo aos necessitados e às vítimas de injustiça social.


Essa mentalidade, ao que parece, se tornou bastante popular no Brasil na década de 1970 graças ao forte impacto causado pelo livro Em seus passos o que faria Jesus?, de Charles M. Sheldon — um livro que não propõe ideais liberais mas que realça muito a necessidade de a igreja realizar grandes obras sociais.

Numa atmosfera de notável entusiasmo liberal, marcada ainda pelos atraentes desafios propostos por obras como a de Sheldon, muitas igrejas passaram a abrir creches, distribuir alimentos, fazer campanhas de agasalho e oferecer cursos de alfabetização aos menos favorecidos.


Ainda que essas ações não fossem erradas em si mesmas, todas eram desdobramentos de uma teologia que negava ou deixava em segundo plano a mensagem pura do evangelho e tentava resguardar a relevância da igreja transformando-a numa entidade assistencial, com pouca ênfase no ensino, na pregação, na santidade e na disciplina.


A ironia disso tudo pôde ser vista no fato de que, ao tentar dar relevância à igreja, privando-a da sã doutrina e dando-lhe uma função social, o liberalismo a tirou do seu foco principal e acabou por diminuí-la. De fato, em muitos casos, a igreja, única detentora da mensagem de salvação, envolveu-se em distrações assistenciais, pondo de lado a pregação da cruz. Adotando um discurso demagógico, sentimental e apelativo, ela deixou de cumprir a missão dada por Deus de distribuir a verdade salvadora e passou a cumprir tarefas que cabiam ao Estado, distribuindo sopa e cobertores.


Em outras ocasiões, igrejas que se deixaram levar pelos discursos sociais se tornaram organizações realmente inúteis e até prejudiciais, dando ajuda a famílias e indivíduos desocupados, financiando indiretamente, dessa forma, o ócio, a bebida, a farra, a prostituição e as drogas. Também algumas igrejas, seguindo as mesmas aspirações de “causar impacto” na comunidade em que estavam, se tornaram verdadeiramente banais, promovendo campanhas de proteção a animais, realizando cultos de oração pelas árvores ou formando grupos que distribuíam abraços aos transeuntes na rua (!).


Assim, o povo, que deveria formar um exército de soldados que defendem corajosamente a fé e a verdade, foi, em alguns casos, transformado num grupo de escoteiros sentimentais que acariciam gatinhos abandonados nas praças.  

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pr. marcos granconato  

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