Meditação © Amplo Publications

6 de setembro de 2017

O Berçário Vazio da Arca de Noé

“Então, o Senhor, do meio de um redemoinho, respondeu a Jó: (…) Acaso, anularás tu, de fato, o meu juízo? Ou me condenarás, para te justificares?” (Jó 40.6,8).



Uma das atitudes mais comuns adotadas pelas pessoas que conhecem mal a Palavra Santa é posicionar-se como juiz de Deus. Tragédias acontecem às vezes em proporções continentais e o Senhor parece não mover um dedo sequer para impedi-las; injustiças são perpetradas todos os dias por homens perversos que logram êxito absoluto em seus maus intentos, tudo diante de um Deus que parece não ver nada; dores horríveis sobrevêm a pessoas boas, até mesmo a recém-nascidos, e o som dos seus gemidos parece não chegar aos céus, de onde também, com muita frequência, não vem nenhum socorro. Tudo isso faz com que as pessoas digam: “Que Deus é esse? Onde ele está nas horas difíceis? Como deixa isso tudo acontecer?”.


Certamente, a impressão que se tem a partir da observação do drama humano somada à crença em Deus é que há algo errado. Como explicar tragédias tão graves? Por que coisas extremamente ruins acontecem se, conforme cremos, existe um Deus poderoso, justo e cheio de bondade, capaz de ver todo o mal que há no universo e impedi-lo com uma só palavra?


Quando lemos a Bíblia em busca das respostas a essas perguntas, percebemos que, se fizermos uma avaliação honesta, ela muitas vezes até piora o problema. Isso porque, ao folhearmos as páginas das Escrituras, nos deparamos frequentemente com um Deus que não somente silencia ou se omite quando vê o mal (como os Salmos, por exemplo, destacam com certa regularidade), mas também trabalha (pasmem!) promovendo a dor. E pior: promovendo a dor de gente que nunca fez nada de errado!


Observe alguns exemplos: Deus se apresentou a Moisés como aquele que faz o mudo, o surdo e o cego (Êx 4.11); os primogênitos do Egito foram todos mortos pelo anjo vingador sendo certo que, muitos deles, não passavam de menininhos ainda na primeira infância (Êx 12.29); o Senhor ordenou que todos os amalequitas fossem passados ao fio da espada, inclusive meninos e crianças de peito…


Dentre todos os episódios bíblicos que mostram Deus agindo na promoção de catástrofes, talvez a história do dilúvio seja a mais chocante, dado o alcance daquela tragédia. Ainda que algumas pessoas defendam a noção de um dilúvio meramente regional, a verdade é que tanto a linguagem bíblica (Gn 6.17) como as evidências geológicas apontam para um cataclisma de proporções globais. Todo o mundo foi inundado no maior flagelo que a humanidade já viu. A mortandade foi imensa, impossível de ser calculada, considerando a vida tanto de homens como de animais.


É evidente, à luz do relato bíblico, que o dilúvio foi o açoite de Deus que estalou nas costas de uma humanidade rebelde e má (Gn 6.5-7). Porém, fica a pergunta: havia bebês, crianças pequenas e pessoas mentalmente incapazes do lado de fora da arca quando aquela grande chuva caiu? Ou será que somente os corpos de marmanjos perversos ficaram boiando nas águas do dilúvio?


Sabemos a incômoda resposta. E sabemos de algo que pode parecer pior: o livro de Gênesis afirma que Deus, além de salvar somente oito pessoas adultas, também reservou um espaço enorme da arca para… bichos! Isso mesmo: cobras, sapos, ratos, cachorros e pardais tiveram lugar garantido no barco do livramento. Crianças, porém, ficaram de fora. Todas elas. A dura realidade é que nenhum garotinho se salvou. A ideia pode parecer horrível (e é mesmo), mas não havia uma criança sequer a bordo da arca de Noé! Animais, porém, lotavam um compartimento inteiro do grande barco.


Que dizer em face disso tudo? Bem, os homens dizem muitas coisas. Os ateus blasfemam, afirmando que com um Deus assim, ninguém precisa do diabo. Os teólogos liberais se livram do problema propondo que o relato do dilúvio não passa de um mito com algum apelo ético, podendo ser posto de lado no tocante à sua historicidade. Os arminianos, pelo menos alguns deles, tentam transformar esse terrível juízo de Deus num lindo gesto de amor divino ― um gesto tocante em que o Senhor “recolhe” todos os bebês para si depois de afogá-los aos milhares. Pois é... É fácil sentar numa escrivaninha com uma caixa de giz de cera e pintar a Bíblia de cor-de-rosa. Isso, porém, não ajuda em nada, não explica nada e não consola em nada. É só teologia medrosa que foge da lâmina afiada do problema.


O que o crente pode dizer, então, afinal? Resposta: nada… ou quase nada. O crente honesto, maduro e piedoso sabe que há pontas soltas na teologia e que essas pontas são difíceis de atar. Ele, porém, não abre mão da certeza de que, não importa o que aconteça, Deus é sempre infinitamente justo e bom. Então, ao olhar para fatos como esse do dilúvio, o cristão cuidadoso fica perplexo e em silêncio, tentando talvez unir os pontos. E quando, enfim, decide dizer algo, o que diz é algo mais ou menos assim: “Eu não entendo como um Deus santo pode derramar as águas do seu castigo sobre bebês de colo. Nesse aspecto, seus juízos são elevados demais para mim. Na administração dessas coisas, seus pensamentos são inescrutáveis e não posso sequer alcançá-los (Is 45.9; 55.9; Dn 4.35; Rm 11.33-34). Estou certo, porém, de que sua justiça é perfeita e de que sua bondade é infinita, mesmo quando tudo ao redor parece apontar para o contrário”.


Assim, diante desses dilemas, o crente descobre que é somente até aí que é capaz de chegar. Aliás, é somente até aí que a Bíblia o permite chegar. Tudo o mais é mera invenção. O fato é que quem anda pela fé, num dado momento é também instado a pensar e a falar pela fé.

pr. marcos granconato

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