Meditação © Amplo Publications

15 de agosto de 2017

De Mar a Mar Mesmo!

Durante a Idade Média, mais especificamente ao longo do século 13, o relacionamento entre judeus e cristãos na Europa se tornou bastante tenso. Os cristãos, respirando os ares das cruzadas, viam nos judeus um inimigo ― talvez, até mais perigoso que os próprios muçulmanos ―, pois estavam vivendo lado a lado com eles e esse “povo rebelde” se opunha abertamente à doutrina de Cristo, criando, segundo se alegava, graves empecilhos à expansão da fé.


Deve-se lembrar que, naqueles dias, era muito comum a crença de que o mundo precisava ser cristianizado antes de Cristo voltar ― uma ideia muito semelhante à que os pós-milenistas pregam hoje. Por isso, os judeus eram vistos com maus olhos. Para muitos, eles eram pessoas que atrasavam a vinda de Jesus, negando-se a crer nele.


Então, a fim de tentar ridicularizar a fé judaica, lançá-la em descrédito e estimular um número maior de conversões, foi promovido, em Barcelona, em 1263, um debate entre um rabino e um teólogo católico. O rabino se chamava Moisés ben Nahman (conhecido como Nahmânides). O teólogo católico era Pablo Cristiani.


O lugar do debate foi preparado e o rei Jaime I de Aragão presidiu as sessões. Líderes eclesiásticos de alta posição, frades dominicanos e franciscanos estavam presentes, assim como cavaleiros e membros da realeza.


O confronto teve início e o rabino, tendo recebido plena liberdade para expressar suas convicções, falou com ousadia, afirmando ser absurda a crença na encarnação, no nascimento virginal e na história de um Deus-homem traído, morto e ressurreto. Diante disso, Pablo Cristiani citou Isaías 53, destacando que esse texto se referia a Jesus. Nahmânides, porém, retrucou dizendo que o texto de Isaías falava da nação de Israel e não de Jesus. Aproveitando, então, o ensejo, ele emendou declarando que o judaísmo não cria em nenhum pecado herdado de Adão, nem tampouco num estado universal de Queda do qual a humanidade precisasse ser salva pelo sacrifício de um redentor. Segundo ele, dentro do judaísmo, a figura do messias era secundária. Ele seria somente um rei humano como outro qualquer, que viria apenas para realizar a bela tarefa de restaurar Jerusalém.


Dá pra imaginar a indignação que essas afirmações causaram em todos os presentes. E uma indignação justa! Nahmânides expunha sua incredulidade abertamente ao rejeitar o testemunho dos apóstolos e as palavras do próprio Cristo, sugerindo que tudo aquilo era pura bobagem.


Num dado momento, porém, Nahmânides disse algo que deveria ter feito os cristãos pensar um pouco mais. Os teólogos católicos, desde tempos antigos, ensinavam que o reino terreno de Cristo já havia sido inaugurado, ainda que seu trono fosse celeste (algo muito parecido com o que hoje chamamos de amilenismo). De fato, Pablo Cristiani acabara de dizer a Nahmânides que o reino de Cristo era universal, cumprindo as palavras proféticas de Zacarias: “… ele anunciará paz às nações; e o seu domínio se estenderá de mar a mar” (Zc 9.10).


Diante dessa afirmação, Nahmânides, inteligente como era, deu um sorriso maroto. Como seria fácil destruir aquele castelo de cartas! Então, com ares zombeteiros, o rabino disse mais ou menos o seguinte:


― É mesmo? O reino de paz mundial do messias foi inaugurado? É bem difícil acreditar nisso. Desde os tempos de Jesus tudo que vemos é violência e saques. As guerras prosseguem sem cessar. Aliás, o que seria dos cavaleiros que estão aqui se não fossem as guerras? E quanto à ideia do reino cristão universal, de modo algum o vemos se estendendo “de mar a mar” como você diz. Na verdade, a cristandade toda, assim como a autoridade da igreja, está restrita a uma região até mesmo menor do que a que era abrangida pelo antigo Império Romano. Que universalidade é essa?


Pablo não via como refutar as coisas óbvias que o judeu dizia. Ficou irritado e acusou o rabino de ver o texto bíblico de forma cruamente física, material e carnal. Quando o debate terminou, ele se sentiu desmoralizado e humilhado. Nahmânides, por sua vez, como era de se esperar, pagou o preço de sua ousadia e foi condenado ao desterro, vindo a morrer em Acre, no ano de 1270.


Essa história mostra um pouco como a curiosa mescla pós-milenista/amilenista presente na teologia católica medieval conduziu a igreja a erros grosseiros, além de a expor ao ridículo diante das mentes pensantes da época. De episódios como o exposto aqui, pode-se concluir quão perigoso é para o cristianismo se afastar do sentido comum das Escrituras.


Ora, também hoje existem pessoas dizendo que o reino universal do Messias já foi inaugurado (amilenismo) ou que precisamos cristianizar a Terra para que, enfim, Cristo volte (pós-milenismo). Todas essas fábulas fecham os olhos para a realidade ao nosso redor, alteram o sentido normal e pretendido dos textos proféticos e fazem da teologia evangélica alvo de risos. Algo, porém, muito pior, decorre dessas crenças: elas removem da esperança cristã a expectativa maravilhosa da inauguração futura de um Reino de Cristo de verdade; um Reino sediado em Jerusalém, “a Cidade do Grande Rei”; um Reino cujo domínio se estenderá um dia “de mar a mar”… De mar a mar mesmo!

pr. marcos granconato

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